Niède Guidon: A Senhora das Pedras Pintadas
Gilmar Teixeira
Na imensidão de um Brasil que às vezes se esquece de si mesmo, uma mulher franco-brasileira ousou recordar-lhe as origens. E não o fez com discursos ou bandeiras, mas com silêncio e poeira, com pincéis e rochas, com a delicadeza de quem escuta o que a terra grita há milênios. Niéde Guidon não voltou ao Brasil – ela se enraizou. E não foi o passaporte francês que a definiu, mas o coração abrasado pelo sertão do Piauí.
Foi ali, em São Raimundo Nonato, onde muitos só veem seca e distância, que ela viu o berço da humanidade. Onde tantos passam apressados, ela parou. Onde muitos ignoram, ela cavou. Nas pedras antigas, ela leu histórias. E com elas, escreveu a sua.
Niéde Guidon era dessas figuras que parecem esculpidas pelo próprio tempo. Tinha o olhar afiado dos que sabem muito, a fala direta dos que não têm tempo a perder, e o coração inquieto de quem veio ao mundo para mudar destinos. Era catedrática, sim, mas também era sertaneja de alma. Mais do que cidadã brasileira, era cidadã da história – uma guardiã da memória que pulsa no solo, na arte rupestre, nas ossadas, nas cinzas do que fomos.
Ela não pedia licença. Plantava ideias como quem planta mandacaru em terra seca: com firmeza e fé. E brotava. Brotou o Parque Nacional da Serra da Capivara, brotou o IPHAN atento, brotou o mundo olhando para o Piauí com respeito. Porque Niéde não era apenas arqueóloga – era visionária.
Mas não pensem que foi fácil. Ser mulher, ser estrangeira, ser honesta demais – eis o tripé que, no Brasil, costuma doer. E doeu. Niéde Guidon enfrentou políticos omissos, caçadores de tudo, traficantes de nada, burocratas de sempre. Comprou brigas – não por vaidade, mas por convicção. E como toda guerreira, colheu mais espinhos do que flores. Ainda assim, prosseguiu.
Hoje, ao sabermos de sua partida, o silêncio ecoa nas pedras. As pinturas rupestres parecem mais vivas, como que chorando. A Serra da Capivara, testemunha de sua luta, baixa a cabeça em reverência. O Brasil, atordoado, perde uma de suas maiores referências – embora, como toda grande presença, Niéde Guidon não parta por inteiro.
Ela segue ali. Na pedra, na trilha, no museu, no coração das crianças que visitam o parque. Niéde Guidon virou fóssil de afeto, vestígio de grandeza, memória viva de um tempo em que a ciência era coragem e o amor pela terra, uma missão.
Ela não era apenas a franco-brasileira, mais brasileira. Era, talvez, a brasileira que o Brasil sonhou ser: justa, obstinada, generosa, imortal. Que ela descanse agora em algum abrigo milenar de pedra e céu, de onde possa continuar escutando os sussurros do passado, agora com a paz que o presente não lhe deu.
E nós, que ficamos, que sejamos dignos de sua luta. Porque se as pedras falam, foi Niéde Guidon quem nos ensinou a ouvi-las.
* Gilmar Teixeira
Membro fundador da ALPA, Cadeira 8
Paulo Afonso-BA