Vira-latas

heróis invisíveis de Paulo Afonso

Luciano Júnior

Na calçada da padaria da Vila Moxotó, deitado feito um filósofo grego exilado em meio às dezenas de seus discípulos caninos, está o Zeca. Caramelo, um tanto manco da pata traseira, mas com um olhar que já viu mais aventuras do que um livro de história. Zeca é um vira-lata raiz. Não desses de apartamento gourmet com nome em inglês. Ele é da rua. Da poeira. Do sol rachando no cocuruto e da chuva que lava as promessas...

Hoje, 31 de julho, é o Dia do Vira-Lata, e se há um lugar onde essa data ganha contornos de manifesto, é Paulo Afonso. Cidade linda, banhada pelo Velho Chico, cheia de energia (literalmente), mas que carrega em suas esquinas uma herança indigesta: a maldição deixada por Marcondes Francisco, que parece ter largado um osso eterno na porta do município — os cães. Muitos, abandonados. Demais.

Eles são centenas. Talvez milhares. Uns dormem sob as árvores da Praça das Mangueiras, outros viraram sentinelas de postos de gasolina, e há os que seguem famílias temporárias que os alimentam como podem. Enquanto isso, a prefeitura, gasta um mensalmente considerável valor para ajudar na alimentação deles. Mas a causa precisa de uma solução efetiva, até porquê, como seres humanos há também no meio dos vira latas alguns "alma sebosas" que até atacam e mordem pedestres.

E a cidade convive com uma realidade curiosa: cães invisíveis que são visíveis demais. O abandono animal também é reflexo de abandono humano, de uma sociedade que ainda não aprendeu a cuidar nem dos próprios semelhantes, quem dirá dos que latem.

Mas veja bem: esta não é uma crônica para jogar pedra — até porque eles correm de pedra há anos. É uma crônica de reconhecimento. De homenagem. Porque os vira-latas de Paulo Afonso são mais do que cães. São símbolos de resistência. Vivem com o que têm, sobrevivem com o que falta, e ainda assim abanam o rabo pra gente que nem sempre merece.

Eles nos ensinam todos os dias que carinho não se compra em Pet Shop. Que fidelidade não está no pedigree, mas na persistência. Que quem vive de migalha pode, sim, ensinar sobre abundância de alma.

Então, hoje, no Dia do Vira-Lata, que tal menos desculpa e mais atitude? Que tal castração em massa, políticas de adoção sérias, parcerias com ONGs locais e campanhas de educação nas escolas?

E se um dia você encontrar o Zeca por aí — o da padaria, lembra? — não ignore. Ele talvez não saiba seu nome, mas reconhecerá sua bondade pelo cheiro. E te dará, de graça, o que andamos perdendo por aí: lealdade, afeto e esperança.

 Luciano Júnior